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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Tentando entender a Cabeça do Cachorro

Neste especial sobre a Amazônia, repórter do Estudantenet abre seu diário de bordo e conta curiosidades da Cabeça do Cachorro, região noroeste da floresta amazônica.
Estou no meu último ano da faculdade de jornalismo na PUC-SP e, dentre as obrigações básicas, preciso apresentar meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Não foi fácil decidir um tema específico. Sabia que queria pesquisar as maravilhas da Amazônia, mas até aí a complexidade me impedia de chegar aos mínimos detalhes. No final do ano passado peguei minha mochila, alguns trocados guardados e caí na estrada. Cruzei o Pará e praticamente o Estado de Amazonas inteiro, até chegar à região que mais me encantou. E foi justamente a ela que dediquei meu tcc: O Alto rio Negro, São Gabriel da Cachoeira.
Voltei para lá agora em julho e como estagiária do Estudantenet irei postar nessas próximas semanas algumas páginas do meu diário de bordo para compartilhar a minha experiência em uma área marcada por problemas sociais e, principalmente, o choque do avanço capitalista frente às tradições indígenas.
A Cabeça do Cachorro, nome dado exatamente pelo seu contorno no mapa brasileiro, ocupa 200 mil quilômetros quadrados, área maior do que muitos países europeus. Faz parte do município de São Gabriel da Cachoeira, o terceiro maior do país em extensão territorial. Constituída à margem esquerda do Rio Negro, está a 1.146 quilômetros de Manaus por via fluvial, distância maior do que São Paulo a Porto Alegre. Dá um trabalho danado chegar no lugar: apenas de barco, que custa três dias de paciência, e de avião, que custa os olhos da cara.
A região do alto e médio Rio Negro é habitada há pelo menos 3 mil anos por um conjunto diversificado de povos indígenas, que falavam idiomas pertencentes a quatro famílias linguísticas distintas: aruak, maku, tukano e yanomami. Para se ter uma ideia, hoje, a cidade de São Gabriel da Cachoeira ainda é composta basicamente por índios. 90% da população tem origem indígena, pertencentes a uma das 23 etnias da região. Número considerável para uma imensa diversidade de idiomas e tradições culturais, tão complexas quanto à grande floresta que os cerca.
O observador desavisado que do avião olha para baixo tem a impressão de um deserto pintado de verde, inóspito, onde habitam apenas verdadeiras cobras negras, vivas, pulsantes águas do Rio Negro. Ledo engano; embora a densidade populacional seja de 0,25 habitantes por quilômetro quadrado, nas margens dos rios existem cerca de 720 povoados; desde agrupamentos de duas ou três famílias a comunidades com mais de trezentos moradores.
O Rio Negro, que drena a área pelo seu curso Alto e Médio, é considerado o maior afluente do Rio Amazonas e forma a maior bacia de água preta do mundo. Suas águas escuras se encontram como óleo e água, com a cor barrenta do Amazonas, formando uma das mais belas paisagens fluviais que eu já vi no Brasil.
A baixa concentração de peixes e de animais de caça - devido à acidez da água negra e a precariedade do solo - criam limites rígidos para o tamanho das comunidades ribeirinhas. Como a divisão do trabalho é precária, cada família realiza todas as tarefas necessárias à subsistência. A parte mais dura cabe às mulheres, encarregadas de cuidar das roças, trazer madeira para o fogo, buscar água nos rios e igarapés, preparar farinha, cuidar dos filhos, cozinhar e lavar, entre outros afazeres.
Não é fácil a vida de quem é obrigado a sobreviver da caça e pesca em locais em que os peixes rareiam nas cheias e os animais de caça estão cada vez mais arredios. A agricultura não é menos trabalhosa, numa terra infértil que, além de mandioca e de meia dúzia de frutas, nada produz. Uma natureza, na certa, cheia de caprichos: uma floresta exuberante e um solo ingrato para agricultura.
As distâncias descomunais e as dificuldades de navegabilidade encarecem o custo de vida (dica: se você for para lá, economize antes de se jogar). É muito mais barato fazer compras no Rio de Janeiro do que na Cabeça do Cachorro. Isso sem falar dos índios que tentam a vida na cidade. Quando vários indígenas ocupam postos de trabalho remunerado, ou se fazem pequenos comerciantes, suas relações com grandes comerciantes de São Gabriel da Cachoeira são nitidamente caracterizados pela patronagem.
Esses aspectos são alguns das muitas características em comum que encontram as vinte e três etnias que vivem no Alto Rio Negro. Cada uma se diferencia de todas ou outras, ainda que apenas em pequenos detalhes. Mas no que diz respeito aos mitos, à arquitetura tradicional e cultura material esse contexto de diversidade ainda converge.
Os povos que habitam as margens dos rios se organizam em “comunidades”, nome dado há décadas pelos missionários. Há cerca de três gerações os índios não vivem mais em malocas, presente hoje apenas na memória e em poucos povoados.
A comunidade compõe-se, geralmente, de um conjunto de casas com paredes de casca de árvore, pau-a-pique ou tábuas e cobertura de palha ou zinco, construído em um pátio aberto, uma capela (católica ou, como na maioria das vezes, protestante), uma escolinha e, eventualmente, posto de saúde. Cada comunidade possui um capitão, não mais pajé, sempre um homem, que tem o papel de reunir o grupo. É um verdadeiro relações-públicas da aldeia. Não se trata de um chefe ou comandante todo poderoso que dá ordens e aplica punições. Na maioria dos casos ele apenas orienta.
Por razões ecológicas, sociológicas e simbólicas, vigoram na área especializações artesanais (produção especializada de certos artefatos por diferentes etnias) que define uma rede de troca. Os tukanos são conhecidos por seus bancos de madeira, os desana e baniwa por seus balaios, os kubeo pelas suas máscaras funerárias, os wananas pelos seus tipitis, os maku pelas flautas de pã. Esses artigos carregam símbolos e contém, nas entrelinhas, uma história de sobrevivência em meio aos avanços da sociedade capitalista.

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